O Que a Ciência Básica nos Ensina Sobre Plasticidade Cerebral e Reabilitação Neurológica-I

Nos anos 90, tive a oportunidade de fazer um Fellowship no National Institute of Neurological Disorders and Stroke, em Bethesda, Maryland (USA), onde participei de várias pesquisas utilizando a estimulação magnética transcraniana em humanos. O que essas pesquisas mostraram de mais interessante foi que o cérebro adulto, ao contrário do que se havia pensado durante muitas décadas, era capaz de se reorganizar drasticamente em resposta a lesões, perda de membros ou mesmo após aprendizado motor.

Algum tempo antes, os neurofisiologistas já haviam demonstrado essa plasticidade cerebral em animais, mas por razões técnicas eles haviam se concentrado basicamente nas vias sensoriais do cérebro.

Essas pesquisas foram importantes porque colocaram um ponto final num conceito errôneo que imperou durante várias décadas, segundo o qual o cérebro só apresentaria plasticidade numa janela de tempo muito estreita no animal jovem, o chamado “período crítico”. Esse conceito tinha sua principal base científica nos experimentos dos ganhadores de um prêmio Nobel, Hubel e Wiesel [1]. Eles demonstraram que as áreas cerebrais que recebem informações dos olhos podiam ser facilmente alteradas pela manipulação das informações oculares para o cérebro nas primeiras semanas ou meses de vida- mas os padrões neurológicos de representação dessas informações dos olhos direito e esquerdo eram depois enrijecidas numa forma “adulta” por meio das vivências visuais precoces. Após esse amadurecimento, nenhuma manipulação da visão era capaz de mudar essa organização. Esse “congelamento” da organização das vias visuais deu base à generalização, pelos neurologistas e neurocientistas, do conceito de período crítico.

O período crítico das vias visuais é real e tem uma explicação: as informações combinadas dos dois olhos devem ser analisadas pelo sistema nervoso de uma maneira muito precisa, para dar origem à nossa visão de profundidade, ou em 3D, a estereopsia. Por isso, os processos cerebrais que são responsáveis pela combinação das imagens dos olhos estão entre os menos “plásticos” de todo o sistema nervoso. Trata-se, portanto, de uma exceção à regra, que hoje conhecemos, de plasticidade cerebral em todas as etapas da vida.

No entanto, esse conceito de que o cérebro adulto seria imutável era difícil de ser reconciliado com a evolução das habilidades do ser humano tanto na criança e adolescente quanto na vida adulta. Do mesmo modo, a recuperação de pacientes com lesões neurológicas em áreas críticas do cérebro parecia desafiar esse conceito de período crítico.

Pouco antes dos nossos estudos com estimulação magnética transcraniana, estudos em animais vinham sistematicamente revelando que a representação sensorial das partes corporais no cérebro de animais se modificava, por exemplo, após a amputação de um membro[2],[3]. Pelos conceitos tradicionais, a área cortical de representação desse membro deveria ficar silenciosa, sem função. O que ocorria, no entanto, é que ela se reorganizava e passava a fazer parte da representação de partes do corpo preservadas e adjacentes à perdida (ou seja, o coto do membro). No humano, o mapeamento do córtex motor com a estimulação magnética revelou o mesmo fenômeno em amputados[4].

Os estudos posteriores com manipulação de membros e até mesmo aprendizado motor, tanto em humanos quanto em animais, são por demais numerosos para serem adequadamente citados neste post, mas todos confirmaram que existia um grau até então nunca imaginado de plasticidade cerebral no cérebro adulto!

A partir desses estudos, hoje podemos enumerar 10 princípios da plasticidade cerebral [5] que podem ter grande importância no desenho de programas de reabilitação neurológica. Em posts futuros abordaremos cada um desses princípios em mais detalhes.

Princípio Descrição
1. Usar ou perder A falta de uso de funções cerebrais específicas pode levar à sua degradação
2. Usar e melhorar O treinamento que mobiliza uma função cerebral específica pode levar à melhora dessa função
3. Especificidade A natureza do treinamento dita a natureza da plasticidade
4. A repetição é importante A indução de plasticidade requer repetições suficientes
5. A intensidade é importante A indução de plasticidade requer intensidade suficiente do treinamento
6. O tempo é importante Diferentes formas de plasticidade ocorrem em tempos diferentes durante o treinamento
7. A saliência é importante A experiência do treinamento tem que ser suficientemente saliente, ou marcante, para induzir a plasticidade
8. A idade é importante A plasticidade induzida pelo treinamento ocorre mais facilmente em cérebros mais jovens
9. Transferência A plasticidade em resposta a uma experiência de treinamento pode facilitar a aquisição de comportamentos semelhantes
10. Interferência A plasticidade em resposta a uma experiência de treinamento pode interferir com a aquisição de outros comportamentos

Referências:

  1. Wiesel, T.N. and Hubel, D.H. Single-cell responses in striate cortex of kittens deprived of vision in one eye. J. Neurophysiol., 1963,26:1003-17

  2. Garraghty PE, Hanes DP, Florence SL, Kaas JH. Pattern of peripheral deafferentation predicts reorganizational limits in adult primate somatosensory cortex.Somatosens Mot Res. 1994;11(2):109-17.

  3. Merzenich MM, Jenkins WM.Reorganization of cortical representations of the hand following alterations of skin inputs induced by nerve injury, skin island transfers, and experience.J Hand Ther. 1993 Apr-Jun;6(2):89-104.

  4. Cohen LG, Bandinelli S, Topka HR, Fuhr P, Roth BJ, Hallett M.Topographic maps of human motor cortex in normal and pathological conditions: mirror movements, amputations and spinal cord injuries.Electroencephalogr Clin Neurophysiol Suppl. 1991;43:36-50.

  5. Kleim JA, Jones TA. Principles of experience-dependent neural plasticity: implications for rehabilitation after brain damage. Speech Lang Hear Res. 2008 Feb;51(1):S225-39. doi: 10.1044/1092-4388(2008/018).

Written on June 6, 2018